Eu me sento aqui ante o campo de batalha, posso ouvir projéteis zunindo, sinto o cheiro de sangue e pólvora misturado no ar com o estranho odor do latão das balas impregnando em meus dedos, não desejo este ambiente nem ao meu inimigo, que nem sei o motivo de odiar, apenas fui ensinado assim. John Morreu ontem para uma bala no queixo, nem sei como, apenas o vi caído, ensanguentado, no chão, deixou uma mulher e dois filhos em casa, tenho pena de quem dará a notícia, tenho pena de sua esposa que parecia tão alegre na foto que ele carregava em seu bolso, não é o primeiro, nem o último colega a cair ao meu lado.
Ontem chegaram civis da cidade inimiga capturada, eles são iguais a mim, aos meus colegas, têm um olhar desolado, parecem sentir vergonha, talvez medo, não sei dizer, não sei mais o que são sentimentos. Vejo crianças de colo cobertas de poeira e fuligem, um marido trazendo o corpo de sua esposa nos braços, um rapaz que olha no horizonte, fixo, sem dizer uma palavra, uma garotinha de uns dez anos no máximo perguntando se vi seus pais, um bebê sem um dos braços e muito mais do mesmo, nada que não vi antes aqui.
Estou ao lado do corpo de Paul, que morreu anteontem e espera aqui para ser levado de volta ao nosso país, só ouvi uma explosão de granada e então não havia mais nada, só seu corpo tremendo no chão, logo suas pupilas dilataram, chequei, não havia pulso, outro que deixou uma viúva, por que eles partiram assim? Tinham um futuro tão promissor, Paul seria engenheiro se não tivesse largado a faculdade para vir à guerra.
Olho ao meu redor e vejo a sombra do que meus colegas seriam, Mark seria médico, Edward cozinheiro, Michael sonhava dirigir ônibus, agora dirige caminhões de suprimento, dentre tantos outros. Vejo suas famílias, seus filhos, suas esposas, seus amigos, todos querem tê-los de volta inteiros, não dentro de uma caixa com uma bandeira por cima, mas então eu vejo o espelho, me pergunto "por que não eu?".
Cresci num orfanato, não sei o que é uma família, todos de lá tomaram rumos distintos e nunca mais nos vimos. Eu fui à guerra porque não tinha outro caminho, muitos aqui vieram iludidos, doutrinados ou obrigados, não tive tempo para amar alguém nem para ser amado, se eu morrer aqui neste campo de lama, ninguém sentirá minha falta, sou descartável, esquecido na história, mas o destino é irônico, eu, que não tenho nada a perder nem ninguém para magoar, estou aqui vivo para ouvir outro grito do sargento, já meus colegas, com tanto futuro, tanta vida pela frente, família, amigos, estão estirados sob um pano, a vida não é justa.
Toinho Stark do Cangaço, 08/06/2024
Nenhum comentário:
Postar um comentário